quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Clube da Luta: uma crítica (?)

por Danilo Anhas

Freud acreditava nos sonhos como manifestação do nosso inconsciente, instância psíquica que guarda todos os segredos da nossa vida, da nossa personalidade. Mesmo que de forma disfarçada um sonho nos mostra os desejos renegados da mente. Se são negados é que esses desejos nos fazem sofrer, causam conflitos. Uma das formas de não os fazer vir à tona através dos sonhos é não dormir. Que desejos tem o personagem principal de “Clube da Luta” a ponto de implorar por medicação a um especialista, após ficar 6 meses sem dormir?
Ao invés de remédio – acho que os médicos todos poderiam ser como esse do filme – o médico sugere que o personagem principal visite um grupo terapêutico de homens com câncer testicular, assim suas afirmações de que sofre com a insônia perderiam toda a razão de ser. Logo no início já se percebe a dificuldade do protagonista entrar em contato consigo mesmo, seja por conta da insônia, seja também por preencher o vazio de sua existência consumindo e mobiliando seu apartamento.
Tamanha é a dificuldade para entrar em contato íntimo consigo mesmo, que finge ser várias pessoas em vários grupos terapêuticos. Ou seja, para tentar encontrar seu eu, ele experimenta outros papéis, identifica-se com eles e isso surte efeito.
Todas essas dificuldades vividas por ele são as vividas por muitas pessoas. Mergulhamos num determinado tipo de existência sem sequer perguntar quem somos nós. Afundamos nas mazelas do sistema capitalista, esquecendo-nos da ética que deve permear nossos valores e moral. É como se a sociedade reprimisse nosso eu, fazendo-nos viver no automático; o próprio personagem, que no começo é Rupert, Cornelius, é quase um robô, funcionando no automático, ingênuo e abobalhado.
Quase um ano depois frequentando os vários grupos terapêuticos e depois de ter se livrado da insônia, um pesadelo em pessoa começa a lhe fazer lembrar do mal de antes: Marla Singer, uma impostora que assim como nosso protagonista passa a frequentar os mesmos grupos. Assim o insone rapaz não consegue mais representar papéis diante de uma pessoa que faz a mesma coisa. No fundo, os dois encontraram nos grupos uma possibilidade de compartilhar experiências, de serem ouvidos e ouvirem. Espaços como esses estão ausentes em nossa sociedade, mesmo nas famílias, onde o pai trabalha muito e chega cansado todos os dias, realidade não muito diferentes das mães. Isso para citar um exemplo apenas.
Marla o incomoda muito mais que a insônia. Ela é a própria insônia. Marla o faz viver fantasias sexuais, algumas delas possivelmente inconscientes, eróticas e até de destruição. Ele não consegue lidar com isso e decide se afastar de Marla. Ao fugir ele não foge especificamente dela, mas sim do que ela representa em sua mente.
Concomitantemente, ele vive uma tremenda solidão, sobretudo em suas viagens a trabalho, de avião. Em todas elas conhece pessoas durante os voos que chama de amigos “porção única”. Isso reflete a fluidez dos contatos sociais da atualidade, ideias bastante trabalhar pelo sociólogo Bauman. As pessoas se concentram no momento e apenas nisso, no instante. Usam as pessoas como mercadorias mesmo, numa tentativa inócua de lidar com a solidão dos tempos modernos. E é “voando” – e aqui cabe perfeitamente um trocadilho com o verbo – que ele conhece o melhor amigo “porção única”: Tyler Durden. Já no voo os dois se identificam.
Tyler representa para o nosso amigo insone aquilo que ele gostaria de ser, talvez uma juventude perdida, não à toa escolheram Brad Pitt para o papel. Tyler surge como um hedonista – corrente filosófica que diz que o prazer é o bem supremo -, viril, inteligente, mas com aspectos rústicos, aqueles condenados pela sociedade: mijar na comida e falar de sexo sem pudor. Tais características o insone não vislumbrava em si mesmo, o que o leva a admirar mais e mais Tyler.
Após voltar do voo no qual conhece Tyler, retorna para o apartamento onde mora e o descobre em chamas, completamente destruído. É um choque para esse consumista que até cogita em pedir ajuda para Marla, mas o faz com Tyler pelo telefone: a ‘ligação” entre ambos se estabelece.
Tyler não o consola, apesar do insone estar aparentemente abatido por ter perdido seus pertencentes tão valorizados pelo seu consumismo que o outro acusa de ser insensato. Tanto que o adverte sobre o consumismo, utilizando conceitos marxistas, tais como o de fetiche da mercadoria e diz: você é aquilo o que você compra. Mas isso Tyler não valoriza. Dessa forma, insere outra visão de mundo para o insone, que começa a ver as coisas sob outra ótica.
Ao saírem do bar onde essa conversa rola, Tyler pede que o insone lhe bata. No começo acha ridículo o pedido, mas acata. Os dois brigam e se arrebentam. Passam a morar juntos numa casa abandonada, totalmente insalubre. É uma mudança radical na vida do nosso insone, que continuo o chamando assim apesar de ter voltado a dormir bem novamente.
As sessões de briga continuam naquele bar e começa a agregar novos membros. Formam um grupo secreto com suas próprias regras do qual somente homens podem participar. Paradoxalmente em todas as brigas os elementos lealdade e respeito estão presentes. Lutar é forma de libertação. A agressividade é algo com o que tentam lidar, eles não a negam tal como fazemos na sociedade, que em lugar de tentar compreendê-la, a reprime.
Cabe ressaltar que nessas lutas há intensa presença do masoquismo e sadismo, conceitos basicamente psicanalíticos de Sigmund Freud. Sentem prazer em apanhar como uma maneira de se livrar dos desejos mundanos, ou como forma de punição por nutri-los. Sentem prazer em bater, punindo aqueles que desejam as coisas do mundo, livrando-os desse mal.
Além disso, pode-se dizer que há certa valorização da juventude no sentido de viver perigosamente, sem se preocupar com as consequências, elemento marcante na personalidade de muitos jovens e adolescentes. E se esse tipo de conduta diz respeito à juventude e a juventude é um valor que até os mais velhos desejam possuir, esse “viver perigosamente” não é algo fortuito nem peculiar somente aos adolescentes e jovens, pois numa sociedade que valoriza a juventude, todos querem ser jovens e se manter assim. Lembra-se aqui da cena do acidente de carro. A própria formação de um grupo, o Clube da Luta, é algo muito peculiar da adolescência, isso porque os adolescentes tendem a andar e formar grupos numa busca de se identificar com coisas novas.
Esse grupo tem um líder, e ele é Tyler Durden, um líder aparentemente democrático – embora eu não ache que ele seja – que comanda as ações do grupo, estas que passam a ser mais terroríficas e se dirigem à sociedade: explodir lojas, brigar com os outros e ameaçar as pessoas... É como se todas essas ações fossem a antítese para uma sociedade consumista.
Um filme americano de sucesso fazendo crítica ao consumismo? Nem pensar! O insone retratado como problemático descobre em meio a muito confusão que ele próprio é Tyler: o criador e líder de um movimento que agora pretende gerar o caos explodindo prédios de cartão de crédito/débito. Tal movimento se espalhou pelo país inteiro sem Tyler saber.
Durden, a projeção idealizada e alucinada do pobre insone, faz todas essas atrocidades sem perceber. Inclusive Marla o acusa de ser instável e problemático. Ele é o louco que de repente se rebela contra o sistema, querendo muda-lo através de atos violentos, embora ninguém de sua gangue mate ninguém. Aliás, o filme peca, pois trata da violência como partindo unicamente do Clube da Luta. Tudo bem que um de seus membros morra, mas ele morre por estar fazendo uma coisa “errada”.
Separo um trecho de Paulo Freire (p. 58) no qual ele diz: “Inauguram a violência os que oprimem, os que exploram, os que não se reconhecem nos outros; não os oprimidos, os explorados, os que não são reconhecidos pelos que os oprimem como outro.” A violência tem início nos que estão no poder.
E sobre o desejo de mudança, o que falar? Quem deseja mudar o mundo e o sistema um insano, louco, maluco, que sofre de insônia? No final ele consegue destruir os prédios, o plano final. Após travar uma luta consigo mesmo, assume a própria personalidade. Era isso, afinal, contra o que ele lutava em suas crises de insônia: aceitar que não aceita o sistema e seu modo de vida. Atinge seu objetivo, mas o que vem depois? O caos? O caos nem sequer é mostrado. O filme acaba. O caos é retratado ao longo do filme como problemas individuais: o cara com câncer, o insone maluco, a mulher suicida... De alguma forma as histórias se cruzam, mas quando o caos vai se instalar de forma geral, na sociedade, não se exibe.
Eis o fim. Não se mostra o caos, ele fica num plano mais individual e assim continua a ser: se tudo está ruim na sociedade é por culpa dos sujeitos e só isso. Aliás, talvez culpa daqueles que ensejam mudanças. Aliás, lutar para mudar a sociedade é loucura e é assim retratada no filme. Você esperava que um filme da sociedade mais capitalista fizesse apologia à transformação social?

Para os donos do poder somos apenas uns babacas que repetem tudo o que eles ditam, tais como aqueles que explanam repetidamente “Robert Paulsen”. Talvez a crítica resida aí, mas estaríamos novamente culpando as pessoas por nossas mazelas. No fundo, quando Tyler aceita quem é, ele aceita a sociedade em que vive. Tanto que o caos não se mostra. O filme acaba. Ele se conforma, pois mata aquele que enseja mudanças. Mudanças? A união dos membros do Clube da Luta deveria ser em prol da transformação e não da destruição. Para encerrar, novamente Paulo Freire (p. 61): “[...] a superação autêntica da contradição opressores-oprimidos não está na pura troca de lugar, na passagem de um polo a outro. Mais ainda: não está em que os oprimidos de hoje, em nome de sua libertação, passem a ter novos opressores”. E Tyler é oprimido, oprime e depois? Ele se liberta? O filme acaba. Não se mostra.

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